terça-feira, 2 de outubro de 2012

República: No reino da bicharada


sinopse: "Em todos os dias do ano, ao longo dos tempos, aconteceram imensas, imensas coisas. Algumas modificaram o mundo, outras fazem parte da história, da religião, da tradição".
O Livro das Datas assinala a centésima publicação da escritora Luísa Ducla Soares.
Esta obra, como o próprio nome indica, narra pequenas histórias sobre as datas relevantes que decorrem ao longo do ano, explicando o seu significado e a sua origem. O 25 de Abril, o 5 de Outubro, o Dia das Bruxas ou o Dia do Pai são apenas alguns dos exemplos a destacar.
No fim do livro, os leitores têm um espaço próprio para mencionar as datas que, para si, são as mais importantes.

No reino da bicharada

Aquele leão era mesmo convencido.
- Sou o rei dos animais – rugia, sentado no rochedo que lhe servia de trono. E os bichos encolhiam-se porque ele é que mandava naquelas terras como antes tinham mandado o seu pai e o seu avô. O galo deixara de cantar para não o acordar de manhã. A hiena tivera de se tornar vegetariana para o grande senhor dispor de toda a caça. Até o elefante deixara de tomar duche na lagoa, não fosse turvar a água onde o leão se via ao espelho. Já estavam habituados àquela vida. Triste sorte, triste sorte...
Só o pardal não se conformava. De vez em quando batia asas e voava para outras paragens onde os animais eram livres e felizes. Quando voltava, punha-se a perguntar, do alto de uma árvore:
- Porque é que vocês fazem tudo o que manda este leão?
Os bichos abafavam-lhe o pio, cantando em coro:

 Ele é senhor,
E o nosso rei,
Ele é que manda
E faz a lei.
 
Sempre assim foi,
Assim será,
E nada muda
Nem mudará.

- Mas por que razão é rei?
Ninguém sabia responder.
- O leão é o bicho mais velho? – quis saber o pardal.
- Não, eu é que sou a mais velha – confessou desta vez a tartaruga que, nunca gostava de dizer a idade.
- É o que tem a boca maior?
Imediatamente o crocodilo e o hipopótamo escancararam as bocarras.
- É o mais sábio? 
Todos se viraram para o mocho, que passava a vida a estudar e a dar lições.
Pela primeira vez, os bichos começaram a pensar que talvez fosse melhor o leão ser substituído.
-Ele só sabe resolver tudo à dentada – criticou uma zebra.
A águia-real aproveitou para propor:
- Eu substituo bem o leão. Não tenho dentes, podem ter a certeza de que não lhes mordo. Como voo alto posso controlar tudo lá de cima. Os bichos é que não estiveram pelos ajustes:
- Ora, ora, tu resolvias tudo à bicada – exclamou logo o pardal.
- Estamos fartos! Não queremos mais reis!
O leão, furioso, ainda tentou travar a revolução. Mas, quando se preparava para morder, um enxame de abelhas pregou-lhe mil ferroadas na língua. Fugiu dali a sete pés...
Então a bicharada reuniu-se toda à beira da lagoa e proclamou a república. A eleição vai ser amanhã e ninguém vai faltar ao acto eleitoral pois o papagaio não se cansa de repetir:

 Nós somos bichos
Não somos gente
Mas também queremos
Um presidente.
Na nossa terra
Quem mandará?
Todos aqueles
Que vivem cá.

Sejam do mato,
Sejam do ar,
Venham já todos,
Vamos votar!

 
Luísa Ducla Soares
O Livro das Datas

 

 



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